Red Latinoamericana de Teatro en Comunidad
(Texto escrito por Valmir Santos* sobre a fundação da Red, em 2009)
Um grande círculo azul celeste preenche o miolo cimentado do
galpão do Centro Cultural Arte em Construção, sede do Instituto Pombas Urbanas
no bairro Cidade Tiradentes. Nas últimas três semanas, o espaço foi preenchido
ombro a ombro, braços, pernas e corpos por cerca de cem homens, mulheres e
crianças de toda a América Latina. Eles se entrelaçariam dia e noite em busca
da força emocional e espiritual de Dom Quixote e Sancho Pança para impulsionar
o nascimento da Red Latinoamericana de Teatro en Comunidad.
Os sonhos de Dom Quixote guiaram as horas e os dias dessa ciranda
fraterna de artistas argentinos, bolivianos, brasileiros, chilenos,
colombianos, cubanos, guatemaltecos, mexicanos, peruanos e salvadorenhos. Em
comum, eles nutrem um profundo respeito pelo teatro em, com e para a
comunidade. Reafirmam o quintal para falar ao mundo.
Vindos de bairros, vilas ou povoados em arrabaldes onde
conseguiram riscar zonas autônomas de arte e de cultura em meio a conflitos
sociais, políticos e econômicos, foi fácil ambientar-se à nova casa no extremo
leste da cidade de São Paulo. Ali, atravessaram manhãs, tardes e noites nos
ensaios das 12 cenas de El Quijote, a versão do diretor Santiago García,
do Grupo Teatro La Candelaria, de Bogotá, Colômbia, para o clássico romance
espanhol de todos os tempos.
A partir do local onde foi gestado El Quijote, Cidade
Tiradentes, os grupos embarcaram em ônibus, kombis e vans para ziguezaguear
basicamente entre o espaço de trabalho, o hotel zona leste adentro e o SESC
Pompeia zona oeste além, conforme o ponto de partida que se adote na cidade.
No galpão de mil e seiscentos metros quadrados do Centro Cultural
Arte em Construção - porque assim o será sempre, arte nunca se dá por concluída
-, ali todos retroalimentaram histórias, se emocionaram, se reconheceram,
almoçaram e jantaram a cumplicidade de colaborar um com a cena do outro numa
generosidade infinita para exercer o sentir, o olhar, o tocar e o escutar em
nome do afeto e do amor incondicionais para criar e construir com confiança.
Esses coletivos teatrais colocaram em ação o diálogo com o qual estão
habituados a lidar em seu fazer teatral comunitário com o vizinho de
parede-meia ou do quarteirão de trás.
Partem do princípio de que todo indivíduo e comunidade têm algo a
dar como fruto de seu labor, de sua existência: uma música, uma dança, uma
história, um poema, um prato típico, uma peça artesanal. Nesse sistema
espontâneo de troca, convém não pregar lições ao interlocutor, tentar
iluminá-lo quanto a vicissitudes humanas, transmitir consciência disso ou
daquilo. O laço cultural nasce de impulsos suficientemente fortes que,
parafraseando o corpo, estimulam o movimento, o gesto, a representação.
Um mutirão dos trabalhadores da arte concretiza o sonho de trazer
à luz este El Quijote multicultural, marco do lançamento da Red
Latinoamericana de Teatro en Comunidad. Organização sem fins jurídicos, mas bem
profundamente simbólicos, a Red foi articulada em encontros realizados entre
2005 e 2008 em Medellín, pela Corporación Cultural Nuestra Gente; na Argentina,
pela La Comedia de Campana e pelo Grupo Catalinas Sur; em Cuba, pelo Teatro
Andante, Quinto Teatro e Teatro los Elementos; e em São Paulo, pelo Instituto
Pombas Urbanas.
Essas vozes comuns fortaleceram o entendimento e a clareza quanto
à importância da ação da Red no continente, ampliando-a cada vez mais a outros
pares. Nesses encontros, o diálogo dos grupos e a interação de experiências
possibilitaram pensar uma Escola Aberta de Teatro em Comunidade, cujos reflexos
convergem para a criação coletiva de El Quijote.
Sentimento de pertencer
O teatro em comunidade tem a ver com a busca de uma nova forma de
se organizar no fazer artístico. É o que leva moradores de toda a América Latina
a fundar seus próprios núcleos para contar as histórias de seu território e de
sua gente através do teatro. Diante do caos do mundo de hoje, engolido por
atomização e desordem, é na comunidade que o homem se reconhece como parte de
um espaço coletivo. Tais são o fim e o sentido, mediante leis e identidades
próprias, de todas as culturas.
Lembramos de algumas trajetórias históricas no continente, como a
do Grupo Catalinas Sur, de Buenos Aires, fundado há 26 anos, adepto de uma
linguagem direta e sem rebuscamentos; o cubano Teatro Los Elementos, há 18 anos
centrado em populações ilhadas ou de imigrantes; o Teatro Trono/Compa, há duas
décadas comprometido na Bolívia com o destino de setores excluídos e
proporcionando alternativas artísticas e culturais; os colombianos Colectivo
Teatral Luz de Luna, de Bogotá, com 22 anos de atenção aos jovens cativados à
experiência cênica; e o Teatro Esquina Latina, de Cali, criado há 35 anos e
voltado à ação social; e os grupos que compõem o Consejo de Teatro de la Región
de los Volcanes, no México, organismo há 26 anos dedicado aos segmentos
popular, indígena e comunitário.
O teatro, por suas qualidades, principalmente aquela de duplicar
esse mesmo sentido coletivo em outro espaço de encontro, é um veículo ideal
para conseguir essa comunhão. O teatro comunitário deve ser visto como um
instrumento transformador de realidades, onde os atores da cena são também os
atores sociais sem pretensão de protagonismo e com absoluta humildade.
Para a conformação de um grupo de teatro comunitário,
subentende-se que todos tenham a convicção de que a arte pode ajudar a
solucionar os problemas locais, inclusive tratar esses conflitos num
espetáculo, conforme o desejo e a percepção das pessoas envolvidas. A
comunidade não é mera receptora de uma mensagem previamente elaborada. Ao
contrário, através da reflexão e da análise toma consciência das suas questões
urgentes e vitais. A prática artística é uma maneira de reagir às formas
hegemônicas de conceber a cultura e construir um espaço micropolítico que
valoriza a reinserção social, o trabalho em equipe.
O teatro em comunidade com agentes culturais locais, crianças,
jovens e adultos, cria uma relação que possibilita ver-se no espelho diante da
sua própria realidade. Por meio desse encontro com a arte, alcançam níveis de
valorização enquanto sujeitos responsáveis, transformadores e libertários.
Um ser humano como a criança de Cidade Tiradentes encontra no
circo, no teatro, na biblioteca, na música ou no grafite uma força para
liberar-se espiritualmente, para renovar seu pensamento, se dar conta de que é
capaz de intervir e de ajudar no desenvolvimento da sociedade. Esse sujeito não
reproduzirá em seu território a violência contemporânea, muitas vezes
subliminar e invisível; reivindicará sua humanidade; terá consciência da sua
plenitude criadora.
Não é muito diferente a realidade da criança, do jovem e do adulto
colombianos moradores do bairro Santa Cruz e do entorno, em Medellín. Faz 22
anos que a Corporación Cultural Nuestra Gente ocupa uma casa amarela onde
funcionava um antigo bordel. Trata-se de um trabalho contínuo de socialização
através do teatro e de outras artes como contraponto à barbárie dos cartéis de
drogas responsáveis por milhares de assassinatos e sequestros entre as décadas
de 1980 e 1990.
A instituição desenvolve um processo permanente de formação e
capacitação - humanas e artísticas. Para Nuestra Gente, o tripé capacitação,
investigação e reflexão serve tanto ao crescimento do grupo quanto ao
desenvolvimento social da comunidade à qual pertence. O objetivo é incentivar
uma atitude consciente sobre os fazeres cultural e artístico, vinculando novas
pessoas à atividade e ajudando a compor espaços de convivência e tolerância.
No Brasil, o teatro contracena historicamente com projetos sociais
nos percursos do Teatro Experimental do Negro, nos anos 1940 e 1950; nos
processos de resistência à ditadura e difusão de uma dramaturgia nacional
popular com o grupo Opinião e o Centro Popular de Cultura (CPC) da União
Nacional dos Estudantes, nos anos 1960; e nas técnicas e ações do Teatro do
Oprimido desenvolvidas a partir dos anos 1970, para citar alguns exemplos.
Tomando esse horizonte, entre os núcleos ativos em São Paulo
citamos o Teatro União e Olho Vivo, fundado há 42 anos, com sede no Bom Retiro,
região central, e o Grupo Pombas Urbanas, nascido há duas décadas e há cinco
anos radicado em Cidade Tiradentes.
Um dos fundadores do Pombas, em outubro de 1989, o diretor e
dramaturgo peruano Lino Rojas (1942-2005) foi quem idealizou e convenceu os
aprendizes a fixarem sede e morada no bairro dormitório repleto de conjuntos
habitacionais na zona leste – a rigor, mesma região e berço do grupo nascido em
São Miguel Paulista. O cenário do galpão, um antigo mercado, era desolador.
- É aqui que temos que fazer teatro, este é o lugar – insistia
Rojas, mais preocupado com o potencial artístico dos cidadãos do que com a
precariedade do espaço. O bairro era escasso em equipamentos públicos básicos
nas áreas de educação e saúde, o que diria na de cultura.
- Não tinha teto, não tinha piso, parede, nada. O Lino nos dizia
todos os dias: “Sonhem as paredes, sonhem o teatro, sonhem as obras que vão
surgir deste espaço, dessas pessoas”. Tudo aqui é feito porque existem pessoas
que estão sonhando – afirma Adriano Mauriz, que partilha o projeto utópico de
Rojas e do Pombas desde o início, há duas décadas, quando contava apenas 13
anos de idade.
Em atividade desde 2004, o Centro Cultural Arte em Construção é a
tradução mais cristalina da militância do jovem Rojas em Lima, sob ditadura
militar, antes de sua vinda ao Brasil em 1975. Ele integrava o grupo Cuyac –
Cultura y Rebelión, formado por estudantes e operários que empreendiam ações
culturais clandestinas lendo poemas, exibindo documentários e apresentando
esquetes de teatro nas favelas e nas minas.
Transformação social
A arte como meio de transformação social impregna a construção
conjunta de El Quijote. Isso transparece na metodologia que cada grupo
elabora no treinamento de ator e na concepção do texto ou da encenação. Para o
diretor Victor Soto, do Colectivo Teatral Antu, do Chile, seria preciso
inclusive elaborar uma grade curricular que atenda às especificidades do
artista comunitário.
- Temos necessidade de trabalho corporal, vocal, de construção de
emoção e de tempo diferentes da escola de teatro oficial – afirma Soto, um dos
idealizadores do Encuentro de Teatro Popular Latinoamericano, o Entepola,
nascido em Santiago em 1987 e atualmente convertido em Festival Internacional
de Teatro Comunitário.
Novas práticas sociais não surgem como um fim em si mesmas. Elas decorrem
da mobilização estética do núcleo que a exerce, simbiose de artistas formados
ou autodidatas apaixonados. As temáticas, os conteúdos e os modos de criação despertam
significados para o sujeito em coletivo. Ele reconhece sua dignidade e seus direitos
como cidadão.
Viver junto, e não juntos, não é viver só em família, só entre
amigos. É uma questão de esfera pública, não privada; diz respeito à pólis,
porque “estamos permanentemente na dependência do contato com pessoas que não
escolhemos”, situa a psicanalista Maria Rita Kehl. Não por acaso, a Bienal de
São Paulo 2006 problematizou o tema Como viver junto.
Durante os seminários daquela edição da Bienal, ao diagnosticar as
opções da arte contemporânea na Rússia pós anos 1990, marcada por um
individualismo exasperado e pelo colapso de qualquer forma de laços sociais
estáveis e de solidariedade, o pesquisador Viktor Misiano concluiu que “as
novas comunidades se veem em confronto com a tarefa de construir não apenas
zonas de solidariedade e de criação, mas também de construir zonas de autonomia
artística”.
O diretor peruano César Escuza Norero, do Grupo Vichama Teatro, vê
os rituais comunitários dissolverem-se ao longo dos tempos por conta de modelos
econômicos, discursos ideológicos que priorizam o indivíduo em detrimento do
coletivo.
- O teatro é um espaço em que isso está sendo resgatado. Não pode
haver indivíduos sem comunidade, isso é uma mentira, somos seres sociais. O
problema é como nos desenvolver individualmente e também contribuir com a
comunidade ou como o sentido comunitário também ajuda a nos desenvolver
pessoalmente – diz Norero.
- O teatro é o que nos une – resume Marcelo Palmares, ator e um
dos coordenadores do Pombas Urbanas.
Os coletivos de teatro em comunidade instauram sociabilidades em
territórios latino-americanos e caribenhos dilacerados historicamente por
colonizações e ditaduras militares e financeiras que lhes impingiram
invisibilidade. A resistência vem do ato de sensibilizar o ser para a vida e
para a arte na contramão do cada um por si.
Sancho e Quixote comunicam o espírito da colaboração mesmo sob
discordâncias de pontos de vistas. Refutam a tirania do consenso. As diferenças
não os anulam. Antes, complementa-os na construção da autonomia que os torna
interdependentes. A interdependência projeta o indivíduo em direção ao outro;
consiste no entendimento do outro como razão de existir – um projeto artístico
em comunidade culmina essa instalação no lugar do outro.
A extraordinária aventura humana deste El Quijote foi feita de muitos encontros. Um deles emblemático pela
sincronia com o ciclo da vida: o da pequena Ivana, de um ano e oito meses,
filha da atriz Ana Salazar, do Grupo Teatro Trono, da Bolívia, com a dona de
casa Angelina de Oliveira Carvalho, de 62 anos, uma entusiasta do trabalho do
filho Paulo de Carvalho Júnior como ator do Pombas Urbanas, a ponto de frequentar
uma oficina de iniciação ao ofício a essa altura do jogo entre o céu e a terra.
As duas conformam uma ponte entre as gerações de homens, mulheres e crianças
ávidas por fruir a arte e a cidadania em todas as suas dimensões.
Assim, numa linha transversal imaginária que vai da Patagônia ao
Rio Bravo, passando pelo Rio Negro, pelo Rio Orinoco, pela Cordilheira dos
Andes e até pela Macondo de Cem Anos de Solidão, a Red Latinoamericana
de Teatro en Comunidad pisa firme o chão azul celestial do Centro Cultural Arte
em Construção. E, abraçada à canção do compositor cubano Silvio Rodríguez, Rabo
de Nube, emana a esperança de que nunca faltarão o amor e a coragem para
enfrentar tempestades de todas as naturezas:
Si me dijeran pide un deseo,
preferiría un rabo de nube,
que se llevara lo feo
y nos dejara el querube.
Un barredor de tristezas,
un aguacero en venganza
que cuando escampe parezca
nuestra esperanza
Fontes de pesquisa:
LAGNADO, Lisette. et. al.
(org). 27ª. Bienal de São Paulo: seminários. Rio de Janeiro: Cobogó,
2008.
RODRÍGUEZ, Silvio. Rabo
de Nube. Canção composta no final
dos anos 1970 pelo cantor e poeta, um dos expoentes da música cubana.
*O jornalista Valmir Santos é mestre em artes cênicas USP e autor da pesquisa "Corpus Alado- Cultura Rebelião no Teatro de Lino Rojas"(2009), resultado do projeto "Estimulo a produção Critica em Artes"-FUNARTE/MinC. Foi convidado especialmente para acompanhar o processo de residência dos artistas envolvidos na montagem de El Quijote, marco da fundação da Rede Latino Americana de Teatro em Comunidade.
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